terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Sobre nós...3


Amar e malamarFevereiro 17, 2009 – 7:42 am

Gostaria de ter ido A mar aberto antes do último sábado. De volta a Natal, a peça de Henrique Fontes lotou por duas noites a Casa da Ribeira no final de semana anterior. Minha intenção era ter ido à primeira noite e escrever a respeito, para quem quisesse alguma opinião, antes da apresentação de domingo. No entanto, só pude ir na semana seguinte, graças a uma sessão extra. E fiquei mesmo com vontade de tê-la visto antes para aproveitar melhor. Por outro lado, vendo a que terá sido, por um bom tempo, a última apresentação, sinto-me mais à vontade para falar sem estragar qualquer surpresa que possa existir para quem ainda pretenda assisti-la.
Já havia escutado algumas opiniões sobre A mar aberto. Todas do tipo “gostei” ou “não gostei”. Se ainda não assisti, prefiro não saber mais que uma ou duas linhas. Até sinopses de divulgação, para mim, costumam ter informação em demasia. Gosto de ir virgem ou semi a peças e filmes. Não costumo me influenciar por críticas e se isso chega a acontecer geralmente funciona às avessas: se dizem que é bom, desconfio; se dizem que é ruim, já começo a gostar. Não sou do contra. É mera observação de costumes. Em Natal, onde morei por muitos anos e tenho vários amigos em diversas áreas artísticas, não costumo errar quanto ao posicionamento do público em relação a um espetáculo.
Em geral, o público natalense quer entretenimento, quer se divertir. Quando vai ao teatro, deseja rir. Não é à toa que comédias e shows de humor costumam lotar por aqui. A parcela de espectadores que vai ao teatro querendo ver algo diferente do seu próprio mundo, pensar a respeito, aprender algo novo ou pensar outras possibilidades é mínima. Quem sai de casa para se divertir deve procurar algo que já conheça, que lhe agrade e seja certeza de risadas e relaxamento. Quem vai ao teatro deve estar preparado para se jogar em um abismo, entrar sozinho na noite mais escura ou encarar o mar aberto sem nunca antes ter passado da arrebentação.
Em relação à peça de Henrique, havia ouvido mais “não gostei” do que “gostei”. Já comecei a gostar dela a partir daí. Com a anterior, Pobres de marré, foi o contrário. Apesar das atuações sempre merecedoras de elogios de Titina Medeiros e Quitéria Kelly, achei que o texto e a direção, mesmo que sutilmente, levavam ao humor em momentos extremamente graves. Se Henrique tivesse pesado a mão, a peça teria menos público, menos gente falando bem dela e teria sido bem melhor. Em A mar aberto, parece ter havido um cuidado maior em manter o tom. Mesmo quando existe troça entre os personagens, não acontece o riso da plateia, já suficientemente envolvida com o drama.
A história se passa em ambientes comuns a pescadores, o que já dá certa gravidade e um posicionamento mais distante – e nesse caso benéfico – dos espectadores. A história é centrada nos sentimentos de seu José Hermílio (Doc Câmara), chefe de uma embarcação, pelo jovem Julio de Joana (João Victor), que aparece querendo se tornar pescador. Surpreendido pela afeição que sente pelo garoto, o homem se pergunta: “o amor pode vir do demo?”. Algo tão diferente do mundo e dos parâmetros aos quais está acostumado, não pode ser coisa boa. “Será que a maldade se veste de amor?”, “O tinhoso sabia se disfarçar para fazer o mal”, diz o capitão, em conflito com a nova realidade. Diante do inesperado, a primeira reação é negar, rejeitar: “Eu quis ter raiva daquele menino que largou os estudos para me ensinar o caminho do mal”. E, acostumado a ter o controle de tudo, arremata: “Com que autoridade?!”. A história se desenrola ainda com a ajuda de outros três pecadores que também funcionam como vozes interiores de seu José. É através de um deles que se lança o incentivo a viver o desejo: “E com medo de se afogar, você vai deixar de tomar banho?”.
Em certo instante da conversa consigo mesmo, com alguém mais experiente ou com um qualquer a quem pede ajuda, José Hermílio lembra de quando sua filha passa na faculdade e se desculpa por isso, por ir “morar na cidade”. Esse parece ser o ponto em que o pescador começa a entender o processo que está vivendo. É também aí que, quem da plateia ainda não caiu na rede, se identifica. Quem não viveu um momento de dúvida e medo no qual aquilo que lhe parece certo, que parece ser o caminho para sua felicidade, talvez fosse melhor ser evitado para não gerar conflito entre os seus? É comum se desculpar por tentar cumprir seu destino, por querer o melhor para si, somente pelo medo da reação de terceiros. A resposta à culpa prévia que nos acostumamos a carregar também é dada na peça: “o mar só condena quem quer ser condenado”.
Apesar de densa, a história é mostrada de forma suave. Talvez o beijo dos personagens e o rápido e discreto nu de um dos pescadores incomodem aos mais pudicos, mas se isso acontece é porque a peça está cumprindo sua função e faz o espectador encarnar o personagem principal: E se eu sentisse um desejo assim? E se eu tivesse que me desnudar dessa forma?
As dúvidas existenciais, de seu José e de qualquer um de nós, continuam mesmo quando a história termina. “Será que ele existiu mesmo ou foi coisa de minha cabeça? Será que a gente pode viver uma coisa que nunca existiu?”. Os que têm coragem de amar aberto que respondam.


Um comentário:

FFF disse...

Eu assisti a peça faz muito tempo. Mas esse resumo fez ela ficar bem clara na memória novamente. Ótimo texto.