quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Devaneios de uma Nau Fulgurante

Devaneios de uma Nau Fulgurante
Por Catarina Alice


"As cabeças, as mãos, os pés e os braços Tombam, cedendo à ação de ignotos pesos!
É então que a vaga dos instintos presos- Mãe de esterilidades e cansaços -
Atira os pensamentos mais devassos
Contra os ossos cranianos indefesos."
Augusto dos Anjos

Da platéia ouvem-se ruídos gradativos que indicam uma desordem instaurada no palco, sons denotam o espaço da representação: o mar, que em sua infinita grandeza, representa o lugar dos nascimentos; um estado transitório; a dúvida; lugar das possibilidades. Então surge diante de nossos olhos, a figura de um homem aparentemente forte e de aspecto simples, localizado no centro da cena, relatando ao público uma recordação que o fez indagar sobre si. Os pés estão descalços, simbolizam o apoio do corpo e ao mesmo tempo podem ser vulneráveis, mancos, tortos. Entre falas cautelosas de quem se precipita a contar algo que não tem a absoluta certeza de ter acontecido, trata o público de modo afetuoso nomeando-o como “Seu José Tarrafeiro”, e busca, entre as mãos dos outros que o acariciam, balbuciar o fato possivelmente ocorrido.
Raymond Williams disserta sobre a situação isolada de um homem individualizado que rompe a ordem no seu interior tão tragicamente como em outros âmbitos. Assim encontra-se o capitão Hermílio, personagem apresentado acima, atormentado por suas próprias aspirações, tenta descobrir-se a partir das investigações de seus limites, estes por sua vez, se tornam trágicos na perspectiva da impossibilidade de organização do conflito, de encontrar um espaço acolhedor no mundo, a condição de uma ordem culpada ou mesmo a dissolução do eu com os outros em um desejo que está além dos relacionamentos. Transfere-se, portanto, a idéia do trágico para vítima trágica:

“No centro da tragédia liberal há uma situação isolada: um homem no ponto culminante de seus poderes e no limite de suas forças, a um só tempo aspirando e sendo derrotado, liberando energias e sendo por elas mesmas destruídas. A estrutura liberal na ênfase sobre a individualidade que se excede, e trágica no reconhecimento final da derrota ou dos seus limites que se impõe à vitória.” (WILLIAMS, 2002, p. 119)

Hermílio questiona a todo o momento a razão da dor que o corrói, traça um paralelo entre o sentimento que ele acredita estar sentindo por Júlio de Joana e o estado de gravidez que suas mulheres se encontravam antes do nascer de seus filhos, contesta o fato de Deus não permitir ao homem o poder de carregar uma criança no ventre, entretanto ele sustenta a mesma sensação. Esse questionamento aponta para a perspectiva da representação do outro dentro em si, o outro que suga o que é necessário para desenvolver-se e que golpeia asfronteiras existentes entre o que entende por si e o indivíduo que oacolheu. Hermílio consegue perceber esse sentimento como esse outro, no entanto, a essência deste se perde em meio aos signos pode representar.
Em determinado momento do espetáculo, os outros personagens que assumem por vezes na estrutura dramatúrgica da obra as falas do capitão, indagam a autoridade que o peixe tem de fazê-los esperar tanto por ele. O peixe é relacionado, devido a sua prodigiosa capacidade de reprodução, ao símbolo da vida e de fecundidade. Quando Júlio de Joana está a bordo da embarcação, a rede dos pescadores é elevada das águas com uma generosa quantidade de peixes. Temos então, uma análise na ordem simbólica da obra, a rede de representações que abarca o mar como lugar das possibilidades e os peixes símbolos de fecundação. Logo após essa fartura, há o encontro do capitão com o menino Júlio e beijo entre eles, todavia, a ação é impedida devido a uma grande tormenta.
Lacan entende que o desejo jamais é satisfeito, ele pode realizar-seem objetos, mas não se satisfaz com esses objetos. O objeto se realizaem objetos, mas o que os objetos assinalam é sempre uma perda. Odesejo desencadeia uma série interminável de objetos, onde cada umfunciona como significante cujo significado, se atingido, se revelacomo um novo significante, e assim sucessivamente. Por sua vez, essacadeia vai sustentar, associando ao sistema da Saussure, dois eixos: oparadigmático ou das relações de similaridade e o sintagmático ou dasrelações de contigüidade. Devido a tal deslizamento, o objeto originaldessa rede pode se perder ou permanecer oculto. O desejo é a nostalgia de um desejo objeto perdido. Este objeto perdido não implica numa relação com um objeto real, podendo se estabelecer na ordem do imaginário, fantasmagórico, o objeto real como projeção de algo. O objeto de desejo é sempre uma falta e não algo que propiciará uma satisfação, ele é marcado por uma perversidade essencial no que consiste no gozo do desejo enquanto desejo.
Hermílio deseja Júlio de Joana, quando pode desejar a imagem que este provoca nele mesmo. O capitão Hermílio vislumbra as características físicas de Júlio de Joana, tal como: as mãos; onde destaca que são frias, finas e com dedos compridos, características que denotam uma diretriz essencialmente feminina, e os olhos; semelhantes a duas pérolas, símbolo lunar, ligado à água e a mulher. Jung aborda conceitos sobre animus e anima, onde o arquétipo da anima, constitui o lado feminino no homem, e o arquétipo do animus constitui o lado masculino na psique da mulher. Júlio questiona o pensamento e atitudes de Hermílio apenas pela sua presença, que desperta inconscientemente algo novo no capitão.
O princípio da perversão do ponto de vista analítico, abordado napresente análise, parte da perspectiva do gozo ser determinado peloprazer, não pelo ato da fecundação. As atividades sexuais, nessecontexto, se estendem além das regiões que se destinam à união sexual, podendo demorar-se em carícias prévias ou na ordem do simbólico. Do ponto de vista biológico, a função dominante do instinto seria a de reprodução. Por conseqüente, as condutas que fogem desse âmbito são consideradas perversas. Hermílio carrega em si a culpa de algo que ele não compreende em sua totalidade, um feto que poderá vazar de suas entranhas a qualquer momento.
No ponto culminante de seu conflito interno Hermílio se depara com uma premissa externa. Júlio intenciona que o desejo de Hermílio é correspondido. O fator do “reconhecer” encontra aqui um valor primordial.

“O encontro de dois Desejos é o confronto de duas afirmações que procuram através da negação (transformação/assimilação) do outro, o reconhecimento. Trata-se de uma luta na qual um dos dois Desejos terá de ser destruído, pois reconhecer o Desejo do outro é fazer seu o valor que o Desejo do outro representa. Nessa luta cada um dos indivíduos arrisca a própria vida pelo reconhecimento.” (GARCIA-ROZA, 2005, p. 143)

Durante o naufrágio os dois, o capitão e o menino, estão unidos, e juntos enfrentaram a tormenta, considerada uma intervenção divina, a cólera de Deus. A tormenta é a arena do embate desses desejos. Ambos sobrevivem ao naufrágio, entretanto, esse choque desencadeia uma transformação. Ao voltar a terra, Hermílio não vê mais Júlio de Joana, apenas diz ter recebido uma carta, na qual havia escrito: “a tempestade os separou, o mar ensinou, capitão sobreviveu à tempestade porque o homem do mar sempre morre em terra”. O capitão enfrentou um monstro, que põe em prova o esforço e a dominação do medo. A figura do monstro é por muitas vezes associada ao vento e a água, é o homem nascido desses elementos, vento como espírito e a água que compõe grande porcentagem do organismo humano. De modo que o monstro que representa a luta com seu próprio eu, e o confronto sobre esse deságua num redescobrimento de si.


Bibliografia:

CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999.
FOUCAULT, Michel. Os Anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Freud e o Inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
UBERSFELD, Anne. Para Ler o Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2005.
WILLIAMS, Raymond. Tragédia Moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

Nenhum comentário: